LuXCorpUS

O teu universo em constante trespassar de mim.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Ao que parece, se eu lesse o Expresso, teria sido mais simples encontrá-lo. ELOGIO AO AMOR - Miguel Esteves Cardoso

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se
apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já
ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá
jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem
e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por
causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e
das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de
antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se
sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor
transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor
tornou-se uma questãoprática. O resultado é que as pessoas, em vez
de se apaixonarem de verdade, ficam"praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do
amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,
farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi
namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.
Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são
uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem",
tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas,
matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém
aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo,
o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que
nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. amor não é para ser uma
ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha
nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada
da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania
contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos.
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice,
facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal
da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é
para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma
questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de
repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra.A vida às vezes mata o amor. A "vidinha"
é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim,
não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem
tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe.
Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor
é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que
não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade.
É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se
invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se
alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente.
O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante
a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha -
é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não
se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver
sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode
ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.


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VIRar o olhO ao contRÁrIo o_O